A obra do compositor húngaro Béla Bartók é permeada pelo folclore e
tradições de seu país e também pela cultura do sudeste europeu, o que traz um tempero muito particular à sua música. Sua obra pianística não é exceção à essa influência e está entre suas composições de maior relevância. Junto de Liszt e Kodály, dois gigantes da música húngara, Bartók ocupa um local de destaque no panteão musical de seu país e na música do século XX.
Esta postagem é inspirada no projeto de iniciação científica que fiz durante minha primeira graduação e tem a intenção de trazer uma análise breve (e bem mais simplificada do que o trabalho original) dos aspectos musicais e folclóricos da obra "Danças Folclóricas Romenas Sz. 56"para piano, uma das obras mais conhecidas de Bartók e que foram baseadas em
melodias de diferentes regiões da Transilvânia. Talvez com essa leitura possamos ter um pequeno vislumbre da linguagem utilizada pelo compositor e que está
presente não apenas neste conjunto de danças, mas no cerne de sua obra
pianística.
Este conjunto de seis danças folclóricas foi composto em 1915 e é dedicado ao Prof. Ion Buşiţia com sua primeira edição em 1918 e estreia em 19 de fevereiro de 1922 na cidade romena
de Cluj-Napoca. Originalmente foi concebida sob o título
“Danças Romenas Folclóricas da Hungria”, contudo com a anexação da
Transilvânia à Romenia em 1920, Bartók deixou como título apenas “Danças Folclóricas Romenas.”
Primeira Dança: Jocul cu bâtă
É a primeira dança e seu nome pode ser traduzido literalmente como “Jogo
de Bastão”. É uma dança baseada no antigo ritual conhecido como Căluş que
existiu na região central da Transilvânia e era composto de jogos, canto e danças
para cada parte do ritual. Com o passar dos anos essas danças perderam seu propósito
ritualístico e sofreram alterações. Joc cul bâtă é uma dança para grupos de
homens que, em círculo, usam um bastão como suporte juntamente com alguns
padrões de passos complexos. Há também adaptações para solo, com poucos
dançarinos e para competições. Geralmente é uma dança animada e empolgante
Abrindo o conjunto de danças, Joc cu bâtă tem a nota Lá como campo
central, alternando entre os modos dórico e aeólio como é justificado nas
terminações de frases nos compassos 8 e 15 e compassos 32 e 47 que trazem
estabilidade e sensação de repouso conclusivo no decorrer desta dança.
Estruturalmente a peça é disposta na forma binária; a articulação é o que deve-se ter mais
cuidado, por ser o condutor da vivacidade e leveza necessárias para dar à esta dança o caráter festivo como sugerido no título Dança de Bastão.
Em contrapartida à melodia, a parte harmônica desta música está
inteiramente concentrada na mão esquerda. De articulação mais simples, ela precisa
de uma atenção maior à acentuação sugerida pelo compositor; com exceção de
pouquíssimos trechos, em todas as notas da mão esquerda há o
sinal de tenuto.
Segunda Dança: Brâul
Brâul é um termo utilizado para alguns tipos de danças específicas para
homens em conjuto, contudo, há algumas versões mistas ou somente para
mulheres. A palavra “brâul” significa cinto e remete à ideia de que cada dançarino
segura o cinto de seu vizinho no grupo, formando assim uma corrente em
pequenas linhas ou semicírculos e devido à conexão dos cintos há uma certa
restrição de movimentos. O termo brâul é utilizado para se referir à família de
danças de vários locais que possuem uma coreografia parecida entre si. Esta dança foi coletada por Bartók na região romena de Banat, onde não
se segue literalmente a estrutura original da dança e ao
invés de cinto, os parceiros apenas dançam de mãos dadas, mãos cruzadas ou
com os ombros próximos, com alguns passos cruzados e pequenos saltos.
Bartók ouviu e coletou essa melodia em novembro de 1912, originalmente ao som de uma Furulya (flauta
camponesa). Em ré dórico, é uma peça simples e tecnicamente fácil, sua
articulação é quase inteiramente indicada por staccatos na melodia, que não
ultrapassa uma oitava em sua tessitura.
Algumas edições sugerem uso de
pedal, contudo, deve haver um uso
muito racional e pequeno do pedal para não interferir na articulação indicada. Em sua gravação de 1920, Bartók executa a melodia em
oitavas (com exceção das figuras em semicolcheias) como forma de variação durante o ritornelo.
Terceira Dança: Pe Loc
A terceira dança leva o título Pe Loc, que em tradução literal significa No
Lugar, e tem origem na região de Igris. Há a suspeita de uma possível origem
oriental ou simplesmente alguma influência árabe na melodia desta dança,
identificada pela presença constante do intervalo de segunda aumentada na
composição. O caráter calmo e taciturno juntamente com o título Pe Loc
evidenciam o tipo de dança que poderia vir a ser executada e dificilmente o
ouvinte a relacionará com movimentos rápidos e festivos. Algumas destas
características remetem à um tipo de dança tradicional chamada Ardeleana. O nome
Ardeleana, refere-se à região de Ardeal que é uma maneira como os romenos
chamam a Transilvânia.
Com algumas variantes, a dança se resume a um casal onde o homem e
sua parceira fica um de frente ao outro executando pequenos passos para o lado para frente ou para trás em movimentos, às vezes opostos ou na mesma direção,
utilizando o menor espaço possível.
O acompanhamento estático executado pela mão esquerda, talvez faça
alusão ao que seria o título “No local” em tradução literal do nome Pe Loc. Não há
saltos bruscos nem alteração de figuras, apenas alterações na altura por
questões harmônicas e três momentos de pausa, essa determinação do
acompanhamento em não alterar-se em contrapartida à melodia sincopada pode
estar ligada ao caráter e passos da dança tradicional Ardeleana.
A melodia é delicada e rica em ornamentos: mordentes e apojaturas são
materiais de relevância na sua construção, e todas estas notas ornamentadas
possuem um acento indicando que às mesmas deve ser dada maior ênfase
quanto à intensidade — respeitando-se sempre o contexto da dinâmica —
especialmente aquelas nos tempos fracos, por trazer à tona a síncopa que é uma
característica desta dança
O grupo húngaro Muzsikas interpretando Pe Loc com um casal de dançarinos
Quarta Dança: Buciumeana
Bucium é um tipo de trompa grande de aproximadamente 1 metro e meio e
de forma cônica. Usualmente feita de madeira, costumava ser utilizada por
pastores como forma de sinalizar e de comunicar-se pelas montanhas e regiões
de grande altitude, além de chamar o rebanho para seu abrigo ou retirá-lo para o
pasto. Em alguns vilarejos sua melodia conduz as procissões de funerais
Tem a origem de seu nome no latim Bucinum que significa clarim ou
trombeta, embora haja um vilarejo chamado Bucium no distrito de Alba na
Transilvânia, Bartók informa que essa melodia foi coletada de um violinista cigano
em dezembro de 1910 em Bistra e por isso há uma dualidade em relação ao
nome desta dança, criando a possibilidade da obra referir-se ao instrumento
Bucium ou ao vilarejo de Bucium.
É a primeira dança em compasso ternário até então. Com uma curta
introdução de dois compassos, é estruturalmente binária. Com sua melodia em modo mixolídio, Bartók descreve que nesta
obra “o uso da melodia folclórica é a parte mais importante da obra. A adição de acompanhamentos e eventuais prelúdios ou poslúdios podem ser considerados como a guarnição de uma jóia"
Cabe relembrar o que Bartók disse em relação às características da música folclórica: “Uma destas características é a completa abstenção de qualquer
sentimentalismo ou exagero de expressão. É o que dá à musica rural uma certa
simplicidade, austeridade, sinceridade de sentimentos e até mesmo grandeza”, devendo haver portanto um meticuloso equilíbrio de expressividade para não ocorrer qualquer exagero que descaracterize a origem folclórica da obra.
Quinta Dança: Poargă Românească
Esta
dança, que em tradução literal significa Polca Romena, foi coletada no condado
de Bihor, onde se costuma dançar em casais, dispersos ou em grupos, com um
casal líder, onde os homens fazem passos para tocar o calcanhar, dar pequenos
tapas nas pernas e às mulheres é permitido fazer pequenas piruetas durante a dança.
Há também a Învârtita que é uma adaptação romena da polca, sendo
uma dança rápida e alegre onde os casais dançam lado a lado em semicírculo
com as mãos no ombro de seu par e a outra no quadril. Em forma binária, o teor festivo desta polca romena é inegável; possui em
sua notação a armadura de clave de ré maior, contudo, há o uso recorrente da
nota sol sustenido o que arremete ao modo lídio com ré servindo de centro
tonal.
Sua métrica
alterna-se entre dois compassos ternários (3/4) e um compasso binário (2/4)
sucessivamente, exceto na transição da parte A para a parte B. Há indicações de
tenuto que, se forem bem observadas, trarão uma acuidade rítmica e um rápido
contraste em meio às notas curtas e saltitantes. Esta pequena dança, pode servir como um pequeno exemplo do caráter
pianístico da obra bartokiana, que trata esse instrumento por um viés totalmente diferente àquele até então utilizado por compositores em períodos anteriores.
Sexta Dança: Mărunţel
A sexta e última dança do ciclo constitui na junção de duas melodias
coletadas em Beius e Neagra; ambas de caráter rápido e alegre costumam ser
apresentadas por grupos de casais.A primeira melodia se assemelha à uma dança variante da ardeleana
conhecida como Pe Picior (À pé). É ágil e rápida com formação de casais
organizados em colunas movendo-se para trás e para os lados.
A segunda melodia é uma dança rápida do condado de Bihor onde há o
costume de recitar frases com oito sílabas com objetivo de encaixá-las à melodia
em colcheias.
Mărunţel em sua tradução literal significa Dança Rápida, o que faz jus ao
seu andamento e figuração rápida, que em momentos lembram arabescos por
seu teor decorativo em vez de emocional. Em forma binária, a primeira dança é
organizada em dois períodos formados por duas frases, antecedente e
consequente, formando uma estrutura regular e simétrica. Com armadura de
clave de ré maior, tem a nota lá como ponto central, havendo a sugestão de modo
lídio no início devido a presença de sol sustenido em trechos da melodia. Na
segunda dança, há uma transição para lá dórico.
Como em sua obra Allegro
Bárbaro, Bartók aborda o piano percussivamente nesta dança [...] reiterações
podem soar “bárbaras”, mas elas também podem ser percussivas no melhor
sentido da palavra, ou seja, em ritmo e cor. Na segunda parte desta dança figuras ornamentais que no andamento sugerido aumentam o aspecto arabesco da peça.
As Danças Romenas para
piano Sz. 56 são um exemplo acanhado, no que tange a extensão e duração, da
linguagem que Bartók encontrou no folclore. No entanto, mesmo nesta obra com
danças que duram não mais que um minuto cada, todo teor popularesco e
simplicidade encontrada na música folclórica emanam
de seus compassos, através de ritmos e modos que somente alguém
que vivenciou e compreendeu a música destes locais poderia ter escrito.
A seguir, deixo dois vídeos importantíssimos relacionados à estas danças: o primeiro é a gravação de campo já com mais de 100 anos, que o próprio Bartók fez durante suas viagens para coleta e pesquisa de material e que são a forma "original" como o compositor as ouviu pela primeira vez. Já o segundo vídeo, traz a versal orquestral da obra interpretada ao vivo pela Orquestra Danubia junto do grupo Muzsikas na Academia Franz Liszt de Budapeste.
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