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Um breve encontro entre Kodály e Debussy



A verdadeira arte é uma das maiores forças existentes no ser humano, e aquele que a torna 
        acessível ao maior número de pessoas possível, é um benfeitor para a humanidade


Zoltán Kodály

          


         O compositor francês Claude Debussy (1862-1918) foi uma das figuras musicas mais importantes da virada do século XX; a influência que sua obra teve em compositores contemporâneos  à ele e nos que viriam a surgir em meados da primeira metade do século é inquestionável. Seu interesse por escalas e sonoridades exóticas em relação à tradição européia não passaria despercebido  - em um período onde o sistema tonal vigente se mostrava praticamente em seu esgotamento inventivo - e abriu uma porta pela qual alguns de seus colegas compositores atravessariam, cada qual desbravando o novo caminho à sua maneira individual.

             Zóltan Kodály (1882-1967) foi um destes que em algum período de sua vida foi claramente influenciado pelo contemporâneo francês. Kodály foi um importante pedagogo, etnomusicólogo, pesquisador e compositor húngaro. Ele, junto de seu amigo e outro grande húngaro, Béla Bartók são reconhecidos pelo trabalho de pesquisa folclórica e pelo teor étnico de sua obra, mas ambos lá no início beberam da mesma fonte parisiense para sua inspiração musical:


O Parlamento em Budapeste, cidade onde Kodály
passou grande parte de sua vida

"Kodály e eu (Bartók) queríamos fazer uma síntese do Leste e Oeste....por causa de nossa raça e por causa da posição geográfica de nosso país, que já foi o ponto extremo do Leste e o bastião defensivo do Oeste, e sentimos que essa era uma tarefa que precisávamos realizar. Mas foi com Debussy, de quem a música nos alcançou e quem mostrou o caminho que devíamos seguir....A grande contribuição de Debussy à música foi reviver entre todos músicos uma percepção da harmonia e suas possibilidades." (Moreux, 1953, p 92)




           A obra que usarei como exemplo deste "encontro" entre os dois compositores foi escrita em 1907 e revela bem a influência "debussyana" na escrita pianística de Kodály, o que é explicito já em seu título: "Méditation sur un motif de Claude Debussy" (Meditação sobre um motivo de Claude Debussy).  
        
           Durante seu período em Paris, Kodály assistiu a um concerto onde constava no programa o Quarteto de Cordas de Debussy, que serviu de inspiração para compor esta obra. A intenção dele não foi transcrever fielmente um movimento ou um tema do quarteto para o piano, mas de trazer a atmosfera da obra e o clima que Debussy entrega ao ouvinte e recriá-los de acordo com a memória que Kodály tinha da experiência de ouvir aquela música ao vivo, como se ele a retirasse de sua memória pouco a pouco e transportasse para o papel não somente suas notas, mas o ambiente e as sensações musicais que ele vivenciou naquele concerto. É uma meditação contemplativa, livre e introspectiva mas principalmente uma homenagem ao grande gênio do compositor francês. 

           As gravações dos trechos utilizados como exemplo são do Budapest String Quartet, e por mim ao piano. No final há link para a íntegra do quarteto e também da meditação, desta vez com o pianista húngaro György Sándor.


           O motivo que foi utilizado por Kodály ocorre várias vezes durante os movimentos do quarteto de Debussy com pequenas mudanças. No I movimento ele é apresentado sob a indicação "animé et très décidé" divergindo bastante em relação ao andamento e dinâmica usados na peça de Kodály, contudo, o delineamento de seus intervalos é muito similar:


                    Debussy - Quarteto em Sol menor (1º movimento)

           No IV movimento do quarteto, o tema é exposto pelo cello e guarda grande semelhança com o motivo inicial mas o andamento é muito mais calmo, "très modéré" como o compositor indica na partitura:


  Debussy - Quarteto em Sol menor (4º movimento)



           Em sua composição Kodály é bem mais livre. Há alargamento do ritmo utilizando aumentação e também há alteração do andamento, mas a atmosfera do quarteto permanece através da relação intervalar muito próxima à do motivo original, especialmente do IV movimento. Novamente, aqui vale repetir que o compositor não teve a intenção de reproduzir literalmente o motivo, mas sim relembrá-lo como se ele ressurgisse aos poucos de sua memória:






           Novamente no IV movimento - após um breve desenvolvimento - o tema reaparece agora no violino e harmonizado:



  Debussy - Quarteto em Sol menor (4º movimento)

           Depois de definir quais serão as características que relacionarão e manterão um link entre sua meditação e o quarteto de cordas, Kodály toma mais liberdade e começa a desenvolver a obra de acordo com sua criatividade. Após uma sessão com um caráter de introdução, o compositor explora o tema brincando com os intervalos que o compõem resultando numa melodia bem definida e delineada sobre um fundo harmônico que remete
 ao impressionismo francês:
                                     
                                           



           Após isso, há claramente uma imersão ao ambiente debussyano onde timbre e harmonia tornam-se protagonistas importantes, e a melodia - antes clara e longa - transforma-se agora em um breve comentário, um fragmento do que fora antes. Esse fragmento tem origem no I movimento do quarteto: 


Debussy - Quarteto em Sol menor (6º compasso do 1º movimento)

Kodály - Méditation sur um motif de Claude Debussy



           Depois de toda elaboração sobre este motivo - sempre criando uma expectativa e ansiedade - Kodály finalmente alcança um ponto culminante. Neste ponto há uma grande tensão formada pela junção de vários fatores como as dissonâncias na harmonia, o "sempre piú agitato e cresc.", a poliritmia e o movimento ascendente até chegar em um sfff, que é rapidamente seguido por uma sucessão de acordes paralelos em movimento descendente. É como se toda a tensão no decorrer da obra até então, tivesse sido canalizada para encontrar esta vazão e surgir para o ouvinte como uma erupção que finalmente encontrou seu momento mas que, em seguida, é acalmada aos poucos até retornar à calmaria original.

           A semelhança com o mesmo momento no quarteto de cordas é grande. Embora sejam notas e ritmos diferentes, se torna cada vez mais claro que há uma síntese entre memória e realidade e o porque Kodály chama a obra de meditação sobre um motivo:





         
  Segue-se à isso uma transição que nos leva ao momento mais introspectivo da obra, onde mais uma vez Kodály utiliza o comentário de 4 notas, desta vez em meio a uma sucessão de acordes em ppp compostos das seis notas da escala de tom inteiro. É interessante ressaltar que em nenhum outro momento da obra esse acorde foi utilizado completo, algo comum na obra de Debussy, e somente na sessão final Kodály o usa. No manuscrito Kodály escreve exatamente neste trecho "Ah, c'est toi, mon ami!" (Ah, é você, meu amigo!) fazendo alusão a Debussy, que para ele finalmente "apareceu" ao utilizar o acorde com as seis notas da escala.           

           Embora toda a obra de Kodály seja permeada pelo universo do folclore húngaro, e sua escrita para piano não é exceção, este é um dos raros exemplos da capacidade inventiva do compositor fora deste âmbito étnico. Esta foi uma obra, até então desconhecida para mim, que de imediato me chamou a atenção a ponto de me levar a estudá-la e executá-la, e se realmente existe paixão à primeira vista, esse foi um exemplo muito sincero. Certamente Zoltán Kodály é um compositor que deve ser mais explorado pelos pianistas.













Referências:

HOBSBAWM, Eric. Era dos Extremos: o breve século XX. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.

SALZMAN, Eric.Introdução à Música do século XX. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1970.
ANDERSON, Richard Paul. The Pianst’s Craft: Mastering the works of great composers. Maryland: Scarecrow Press Inc., 2012.
KLEIN, Michael L. e REYLAND, Nicholas. Music and Narrative since 1900. U.S.: Indiana University Press, 2012.
ROSS, Alex. O Resto é Ruído: escutando o século XX. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.
ROIG-FRANCOLÍ, Miguel A. Harmony in Context. New York: McGraw-Hill Education, 2002.

SCHOENBERG, Arnold. Fundamentos da Composição Musical. São Paulo:Editora da Universidade de São Paulo, 1996
GRIFFITHS, Paul. A Música Moderna: uma história concisa e ilustrada de Debussy a Boulez. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1987.
BARTÓK ARCHIVES, Institute for Musicology of the Research Centre for the Humanities Hungarian Academy of Sciences. Disponível em: <http://www.zti.hu/bartok/index.htm> Acesso em: Novembro 2013. _____. Disponível em: <http://www.zti.hu/bartok/ba_en_06_m.htm?0405> Acesso em: Novembro 2013.
SADIE, Stanley. New Grove Dictionary of Music & Musicians 2. ed.UK. Oxford University Press, 2004.
CARPEAUX, Otto Maria. Uma Nova História da Musica. Rio de Janeiro: Ediouro, 1999.

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